quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Revisitando o Sistema Ving Tsun com os discípulos

 

Nas últimas semanas, pude fazer algo que me deixou muito feliz: trabalhar diretamente com cada discípulo ou To Dai que se interessou em revisar um determinado Domínio do Sistema Ving Tsun comigo. Com a celebração do meu aniversário se aproximando, entendi que ele poderia ser usado como um marco para trabalhar com cada uma dessas pessoas marcos do Programa que, por alguma razão, não foram bem apresentados — ou sequer apresentados — na primeira oportunidade que essas pessoas tiveram comigo.

Então, você podia me ver ali, com cada uma dessas pessoas, em um momento no qual tanto eu quanto o discípulo nos dávamos uma nova oportunidade de fazer melhor desta vez.

Existe um termo pouco conhecido, que é o Fong Faat (方法). Ele diz respeito à metodologia encontrada para o processo de transmissão e aprendizagem, a partir da noção de fan chuen (分傳). E o que é fan chuen (分傳)? Podemos dizer que é a “transmissão individualizada”. Após vivenciar intensamente com o Grão-Mestre Leo Imamura esse processo de personalização na minha própria jornada, passei a admirar ainda mais sua paciência e dedicação (como sempre ressalto aqui). Porque o ajuste para cada praticante — com suas dificuldades, qualidades, potenciais e auto-sabotagens — é algo extremamente delicado.

Sabe, alguns anos atrás, sentado em uma cafeteria, me disseram: “...Acho que você está dando um ‘reset’ no Sistema que não é necessário...” - Apesar da pessoa que estava me dizendo aquilo, eu já não tinha nenhuma dúvida da importância do que estava fazendo: para ser um melhor profissional, para ser um melhor Si Fu, mas também... por mim.

Tenho um irmão Kung Fu que já está parado há muito tempo. Às vezes ele ensaia retomar, e numa dessas conversas eu lhe disse algo como: “Cara, tem esse garoto que você deixou lá atrás, em algum lugar, numa encruzilhada entre duas estradas que parecem não dar em lugar nenhum. Você deve a esse menino voltar lá e buscá-lo.” - Eu dizia isso para ele, mas era como se precisasse ouvir a mim mesmo falando aquilo.

O Grão-Mestre Leo Imamura nos conduz a uma tomada de consciência sobre o Sistema — e você abre um sorriso. Não tem a ver com o carisma dele ou com algo legal que ele disse. Esses momentos geralmente são silenciosos, e ele geralmente está muito sério. É um momento estranho, em que o Sistema parece falar com você, e você sente aquele adolescente voltando. Aquele de 15 anos de idade, que começou a praticar Ving Tsun...

Nós estávamos começando às 7h da manhã e indo até às 23h, sem parar... Era incrível. Era o mesmo espírito de São Paulo chegando até o Méier.
Não tem nada a ver com alguma excentricidade, com querer simplesmente entrar noite adentro. É que, a partir da avaliação e reavaliação constante do trabalho e da pessoa, você sente a necessidade de ir mais 5 minutos, mais 10... ou mais 5 horas. E o mais legal é como o discípulo parece compartilhar de um compromisso silencioso de esgotar tudo o que precisa ser trabalhado naquele dia.

Também não tem a ver com fazer um checklist dos diferentes marcos de um Domínio. É um sentimento de que aquele componente associado, que está sendo trabalhado, ainda pode ficar melhor. Ainda não foi totalmente compreendido. Ou, quem sabe, parece haver algo ali, bem diante de você... você sente isso, mas ainda não consegue ver. E agora você também não quer parar enquanto não conseguir.

Então, você vê pessoas praticando por horas, sem cansar, sem pedir para parar. E aí você entende o poder da coerência. Porque um trabalho coerente... não cansa.
É isso que vivo em São Paulo — e é o que tentava dar a vida ali para que o mesmo fosse possível com meus discípulos.


O Grão-Mestre Leo Imamura comenta que:
“...Pode-se relacionar a noção de bei chuen 秘傳 com a expressão Bat Chuen Ji Bei 不傳之秘. Quando se fala de bei chuen 秘傳, não se trata de algo a ser escondido, mas de algo que é inalcançável por aqueles que ainda não aprenderam a enxergar o oculto...”

Então, como estávamos repisando marcos do Sistema Ving Tsun que já haviam sido apresentados a essas pessoas — independentemente da qualidade com que isso foi feito no passado —, eu estava podendo interagir mais diretamente com esses discípulos e, em outros casos, lembrá-los de sua antiguidade, de seu tempo na Família Kung Fu, de modo que tivessem uma brevidade maior para responder a um estímulo.

Porém, havia um sentimento que todos, nos diferentes dias, compartilharam:

A impressão que dá é a de que eu nunca tinha visto isso antes...”

A foto acima é de 2013, na então "Casa dos Discípulos". Nela, podemos ver, em primeiro plano, o Grão-Mestre Leo Imamura; ao seu lado, o Mestre Paul Liu; ao lado dele, a Mestra Cristina Azevedo; e, de pé, praticando o Cham Kiu, o Si Suk Paulo Camiz Sr.

Eu estava com Si Gung durante toda a manhã, e algo curioso aconteceu — algo que já compartilhei aqui antes: quando ele me pediu para participar da prática, eu simplesmente não conseguia sair do lugar. Parecia que eu nunca tinha feito Toei Ma na vida. Mesmo com a paciência e o carinho característicos do Mestre Paul Liu, parecia uma arte marcial diferente da que eu praticava.

No artigo que escrevi na época, minha interpretação sobre o episódio foi:
“...Para mim é sempre muito rico poder acompanhar a maneira como Si Gung deixa a sessão correr. O nível de mobilização que ele propõe também é bem alto, e humildemente é como se eu estivesse aprendendo do zero...”
Naquele artigo de 2013, eu nem sabia do que estava falando.

Naquela mesma manhã, Si Gung gentilmente cedeu duas horas de seu tempo para trabalhar comigo toda a listagem do Cham Kiu. A Professora Vanise Almeida, minha Si Taai, talvez chamasse essa oportunidade de “dádiva” — mas eu era muito imaturo para compreender aquele momento. Ainda assim, meu instinto me levou a compartilhar todo aquele estudo, na primeira oportunidade, com alguns praticantes do então "Núcleo Méier", entre eles Rodrigo Caputo e Lucas Eustáquio.
Como uma espécie de segredo recém-descoberto...

Acho que o principal sentimento que venho experimentando, muito fortemente, é o de gratidão. Apesar de ser uma palavra usada de forma clichê nos últimos anos pelas pessoas, o sentimento de gratidão sempre esteve presente.

É claro que minha habilidade de transmissão ainda está muito aquém do que é possível alcançar. Mas, para aquelas pessoas, naquelas horas que passamos juntos praticando, no meu coração eu sabia que pouco importava ser eu quem estivesse ali com elas. Porque ao longo do dia, de alguma forma misteriosa, era o Sistema Ving Tsun tentando se manifestar por meio da dedicação mútua — não só das duas pessoas que estavam ali praticando, mas também do trabalho do Grão-Mestre Leo Imamura, apreendido em passeios no shopping, em cafés, restaurantes, ou em conversas durante trajetos de carro por São Paulo — e que, de algum modo, chegava até aquele momento.

Foi então que, pensando sobre isso, me ocorreu um ditado:
O homem que planta uma árvore sabendo que nunca irá se sentar à sombra dela começou a entender o sentido das coisas.

Talvez, no final das contas, esse seja o trabalho do Grão-Mestre Leo.


Eu nunca desisti.



domingo, 12 de outubro de 2025

The strategic aspects of the Baat Jaam Do configuration.

  

(With Senior Master Leandro Godoy and Senior Master Fabio Gomes)

When I first gained access to the domain of Baat Jaam Do, it was July 2008. My mind was preoccupied with other matters, and I did not yet understand what it meant. One might have seen me, a year later, debating whether or not to purchase a pair of Baat Jaam Do that were being imported from China. The opportunity was there, but I saw little reason to pursue it.

At that time, my feeling when practising Baat Jaam Do was that I had to force myself to do it. Baat Jaam Do represents a pinnacle in several respects — one of which is the exploration of the Ving Tsun System itself. In cases such as mine, one ends up resorting to resources outside the "Kung Fu dimension" because one has not yet developed the mindset necessary to simply study.

As a result, something very simple completely escaped my awareness: the strategic aspects of the Baat Jaam Do configuration.

It had never occurred to me, even a year later, that understanding its configuration might contribute meaningfully to my study. I ended up acquiring the pair from China at the encouragement of my Kung Fu brother, Vlaidmir Anchieta. With his characteristic kindness towards me, he noted that we did not know when we might next have the opportunity to acquire such a pair for practice.

As I did not yet know how to begin exploring the configuration, that first pair felt far too large for me, and my wrists would quickly ache due to the excessive force I was applying.

This frustrated me deeply; with each practice, I felt increasingly foolish. It was as though one were holding a mirror that magnified all one’s flaws in a given process. That is not an easy thing to face.

I also did not want to complain about the Baat Jaam Do — no one else seemed to — and I did not wish to give the impression that I did not know how to use them.

It was only in 2013, during a study session led by Grandmaster Leo Imamura at one of the residences where my master had once lived, that I saw, for the first time, a slide showing the different parts of the Baat Jaam Do and their respective names.


(Grandmaster Leo Imamura talks about the 
configuration of the  "Baat Jaam Do", 2013)

There is potential in things, but it is not all of that potential that we will necessarily make use of. Another important point is that, even if the arrangement of something is potentially strategic, it may stand right before us — and yet, if we are not prepared, we will not be able to perceive anything at all.

That is precisely what happened to me on that Sunday morning.

Although the slide was being presented, in practical terms it would not come to mean very much to me in the years that followed.


(From left to right: the one that came from China in 2009, 
and the two crafted by Senior Master Godoy)

My subsequent pairs of Baat Jaam Do were made by Senior Master Leandro Godoy, the second of which is the one in the middle of the photograph above. Despite the darkened blade and the wooden handle — both very well crafted — the blade’s shape was skewed.

By then it was 2021, and I still could not grasp how to make proper use of the Baat Jaam Do configuration.

It was as if the Ving Tsun System had a kind of safety mechanism: for certain things, no matter how much you try, you simply will not be able to progress beyond a certain point unless you know how to study. I no longer tormented myself during practice, but I had become stagnant.

Until one day, the configuration began to become slightly clearer. I had been within the domain of Baat Jaam Do for sixteen years by then.

It was at that point, taking advantage of an opportunity, that I spoke with Senior Master Leandro Godoy — just before recording an interview with him for my Vida Kung Fu podcast — about what he thought of the idea of customising a Baat Jaam Do.

My Kung Fu brother, Thiago Silva, was tending to a work-related task on his tablet, and I, sitting with him at a café in Largo do Machado neighbourhood, was able to listen to Master Godoy’s thoughts on my question — as always, very insightful.

A year and a half after that conversation in a café in São Paulo — in the presence of Senior Master Fabio Gomes and the designer and cinematographer Nan Satornlug (photo above) — I received my third pair of Baat Jaam Do from the hands of Senior Master Godoy, because I had bought them earlier this year.

My understanding of how to make use of the Baat Jaam Do configuration has been gradually becoming clearer, seventeen years after that July in 2008. This gave rise to the need for a new pair — one without any distortions, designed exclusively with study in mind.

The Safeguarding Programme is fundamental in allowing one’s Kung Fu to be built in such a way that the practitioner has the chance to appreciate the different stages of the Ving Tsun System over time.

I never gave up.


Aspectos Estratégicos da Configuração do Baat Jaam Do

 

(Com Mestre Senior Leandro Godoy e Mestre Senior Fabio Gomes)

Quando tive acesso ao domínio "Baat Jaam Do" era julho de 2008. Minha mente estava em outras questões e eu não sabia o que aquilo significava. Você então poderia me ver, um ano depois, decidindo se comprava ou não um par de Baat Jaam Do que viriam da China. A oportunidade estava ali, mas eu não via muita razão para fazê-lo. Meu sentimento ao praticar o "Baat Jaam Do" naquele período era o de que eu precisava me forçar a fazê‑lo. O "Baat Jaam Do" é um ápice em vários sentidos, e um deles é a de exploração do Sistema Ving Tsun. Em casos como o meu, você acaba fazendo uso de recursos fora da "dimensão Kung Fu" porque não construiu de fato uma mentalidade que lhe permita simplesmente estudar.  Com isso, algo muito simples para mim passava completamente despercebido: Os aspectos estratégicos da configuração do Baat Jaam Do. 

Nunca me passou pela cabeça, depois de um ano, que o entendimento de sua configuração poderia contribuir para o estudo. Acabei adquirindo o par vindo da China por incentivo do meu irmão de Kung Fu, Vlaidmir Anchieta. Com seu carinho costumeiro para comigo, ele me disse que não sabíamos quando teríamos outra oportunidade de adquirir um par como aquele para praticar. Por não saber nem como começar a explorar a configuração, aquele primeiro par parecia grande demais para mim e, rapidamente, meus pulsos doíam devido à força que eu empregava.

 Aquilo me irritava profundamente; a cada prática eu me sentia mais burro. Era como se você pegasse um espelho que amplificasse todas as suas falhas em determinado processo. Não é fácil lidar com isso. Eu também não queria reclamar do Baat Jaam Do — não ouvia ninguém reclamar — e não queria que parecesse que eu não sabia como usá‑lo. Foi apenas em 2013, durante um estudo promovido pelo Grão‑Mestre Leo Imamura em uma das casas onde meu mestre morou, que eu vi, pela primeira vez, um slide com as diferentes partes da faca e seus nomes.

(Grão-Mestre Leo Imamura fala da configuração do "Baat Jaam Do", 2013)

Existe um potencial nas coisas, mas não será todo o potencial que vamos usar. Outra coisa importante, é que mesmo que a disposição de algo seja potencialmente estratégica, isso pode estar diante de nós que se não estivermos preparados, não vamos conseguir enxergar nada. E foi o que aconteceu comigo naquela manhã de Domingo. O slide apesar de estar sendo mostrado, em termos práticos não iria querer dizer muita coisa para mim nos anos que se seguiram. 

(Da esquerda para a direita, o par vindo da China em 2009 e os dois feitos pelo Mestre Senior Godoy)

Meus pares seguintes de Baat Jaam Do, foram feitas pelo Mestre Sênior Leandro Godoy, sendo a segunda delas a faca do meio na foto acima. Apesar da lâmina escurecida e do cabo de madeira — ambos muito bem feitos — o shape da lâmina era enviesado. Já estávamos em 2021, e eu ainda não conseguia compreender como me utilizar da configuração do Baat Jaam Do.

Era como se o sistema Ving Tsun tivesse uma espécie de dispositivo de segurança: para certas coisas, não importa o quanto você tente, você simplesmente não conseguirá ir além de um certo ponto se não souber como estudar. Eu já não me martirizava mais ao praticar, mas estava estagnado.

Até que, um dia, a configuração da faca começou a se tornar um pouco mais clara. Eu já havia acessado o domínio "Baat Jaam Do" há dezesseis anos. Foi então que, aproveitando uma oportunidade, conversei com o Mestre Sênior Leandro Godoy, pouco antes da entrevista que faria com ele para o meu podcast Vida Kung Fu, sobre o que ele achava da ideia de personalizar um Baat Jaam Do.

Meu irmão Kung Fu, Thiago Silva, atendia a uma demanda de trabalho em seu tablet, e eu, sentado com ele numa cafeteria no Largo do Machado, pude ouvir as considerações do Mestre Godoy sobre minha pergunta. Como sempre, muito inteligentes.

Um ano e meio depois daquela conversa em uma cafeteria, em São Paulo — na presença do também Mestre Sênior Fabio Gomes e da designer e cinegrafista Nan Satornlug(foto acima) — recebi meu terceiro par de Baat Jaam Do, das mãos do Mestre Sênior Godoy, que o havia encomendado no início do ano.

Meu entendimento sobre como tirar proveito da configuração do Baat Jaam Do vem se tornando mais claro gradualmente, após dezessete anos daquele julho de 2008. E isso fez surgir a necessidade de um novo par, sem nenhum enviesamento e pensado exclusivamente para o estudo.

O Programa de Salvaguarda é fundamental para que, gradualmente, a pessoa tenha seu Kung Fu construído de forma a ter a chance de apreciar os diferentes momentos do Sistema Ving Tsun.

Eu nunca desisti.

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

A relação "Si Hing-Dai" (師兄弟) na Dimensão Kung Fu.

 

Você então podia nos ver ali, naquela manhã de sábado: eu e Diego (discípulo do Mestre Sênior Monnerat), que nos observava com atenção. Ao fundo, o Mestre Sênior Fabio Gomes, sempre muito atento ao que seu "Si Fu", o Grão-Mestre Leo Imamura, diz, validava com ele alguns conceitos. Na porta, meu discípulo Lucas assistia à minha tentativa de tutorização dentro do Domínio "Cham Kiu".

Bem antes disso, nos encontramos na padaria, e o Grão-Mestre Leo Imamura chegou trazendo importantes indagações sobre o trabalho que seria feito com Diego naquela manhã. Eu já havia feito trabalhado com ele também na noite de sexta-feira, mas o Grão-Mestre afirmava que, para aquela manhã, o que foi feito na noite anterior não era mais suficiente. Por isso, ele trouxe algumas perguntas bem diretas sobre o trabalho a ser realizado, e todos à mesa me observavam responder.

Geralmente, eu não fico nervoso em situações assim, mas naquela manhã em particular, eu estava. Não pelas pessoas olhando, mas porque, por alguma razão misteriosa, alguns meses antes, dentro do mesmo trabalho do "Cham Kiu", minha performance chegou a ser constrangedora. Em determinado momento naquela ocasião, o Grão-Mestre Leo Imamura chegou a pedir ao Mestre Monnerat que me ajudasse — parecia que algum "botão mental" havia sido desligado.

Por isso, sentado ali, minha ansiedade em mostrar que a situação não era mais a mesma era tamanha que eu não conseguia colocar em palavras o que queria dizer. Nessas horas, lembro também de uma fala da Professora Vanise para mim, orientando-me a "baixar a guarda e parar de lutar um pouco":
— "Você está lutando há muito tempo, tenta ser menos Yang um pouco, Thiago" — teria dito ela.

É como uma competição comigo mesmo. Mas o Grão-Mestre Leo Imamura gentilmente me conduziu ao apropriado e pontuou que era importante eu conseguir verbalizar exatamente o que eu sabia. Nesse ínterim, ele também pôde, de maneira muito rica, me mostrar o quanto minha mente é voltada para "Mobilização", e não para "Tutorização".
A primeira vez que tentei ajudar o Diego, a pedido do Grão-Mestre, foi em um hotel na Barra, de madrugada, alguns anos atrás. Naquela ocasião e em outras mais, talvez Diego tenha ficado confuso por conta da minha conduta durante a prática, não tão assertiva a respeito do que estava fazendo. Isso ocorre porque, no nível de trabalho que o Grão-Mestre Leo Imamura propõe, um momento de desatenção e você sabe que precisa recomeçar tudo de novo. Às vezes ele vem até você e fica olhando de perto, às vezes chama sua atenção com a veemência que a natureza do Domínio em que você está pede, mas ele também diz "obrigado" quando você não comprometeu o trabalho.

 Com isso, não é difícil praticar por muitas horas. Você fica tão imerso em busca da excelência que o maior cuidado que eu preciso ter é o de não me voltar tanto pra dentro buscando o apropriado e esquecer da pessoa que está na minha frente. 

Com o tempo, as práticas com o Diego passaram a terminar com um sorriso de nossa parte, Diego agradece e damos um breve abraço. Mal falamos durante toda a prática, mas não tem nada a ser falado. Às vezes o esforço mútuo em busca da intencionalidade é tamanho que, quando o Grão-Mestre faz uma pausa estratégica e pergunta: "Você quer fazer alguma contribuição, Mestre Pereira?" – é quase certo eu falar: "Não, Si Gung". Por outro lado, quando ele direciona a pergunta ao Si Fu do Diego que acompanha tudo, Mestre Monnerat faz breves e educados comentários. Sempre positivos e que visam a melhora. Então continuamos.

Recentemente, tive acesso a um vídeo espetacular do 7º dan de Aikido, Sihan Ricardo Leite, sobre a relação de irmandade dentro do mundo das artes marciais.
— "Você encontra o cara todo dia, e você eventualmente faz amizade até no trabalho. Fazer amizade não é o que caracteriza a prática do Aikido. Proporcionar uma harmonia, uma irmandade, que está baseada, fundamentada na experiência marcial. Nós nos tornamos irmãos quando a gente, junto, encontra o porquê de um movimento, sem força. Eu, que estou aplicando, encontro a via para explorar a força do meu parceiro, que está me atacando, e faço isso de tal forma que sai independente de mim ou dele. Porque nós veiculamos a arte na prática para além da nossa capacidade consciente. Ela se expressou na plenitude da nossa capacidade humana individual, em conjunto."

Essa fala me parece sensacional, pois ele conseguiu colocar em palavras um sentimento que experimentei exatamente com o Diego na noite de sexta e, principalmente, na manhã de sábado. Não somos da mesma Família Kung Fu, e o Diego gentilmente me chama de "Si Hing", mas eu quero entender que vivi com ele exatamente o que o Sihan Ricardo Leite descreve em seu vídeo, independente de sermos da mesma Família Kung Fu ou não.


Mas talvez você se lembre do Lucas parado na porta do Instituto, na primeira imagem deste artigo. Como sempre escrevo aqui, entre erros e mais erros, e entre as dificuldades da Vida Kung Fu e da prática, o Lucas sempre tem acesso a tudo o que deseja nessa jornada.

Naquele mesmo dia, após o evento com o Mestre Bruno no Hotel Nikkey, retornamos ao Instituto Moy Yat e ficamos por uma hora e meia lá praticando. Lucas havia comido um pouco demais e provado uma cachaça chinesa oferecida pelo Mestre Bruno. Estava usando roupa social durante a prática e, mesmo com o ar-condicionado, suava bastante.

Em certo momento, Lucas parou, olhando para o nada, sentado sozinho na sala de convivência. Olhei para ele pela porta e perguntei se estava tudo bem. Ele pediu um tempo, porque a comida estava "voltando". Pouco tempo depois, levantou-se e continuou — agora praticando o "Biu Gwan". Parecia muito melhor do que da última vez que o vi. A cada tentativa, parecia mais preciso que a anterior, e não percebi mais nele o semblante de alguém que estava passando mal. Muito pelo contrário — ele parecia imerso.

Com uma compreensão sobre o manuseio do bastão mais profunda adquirida no Seminário do Nível 5, e com a atitude mental apropriada, aquele foi um dos nossos melhores dias. Talvez eu nem precisasse mais estar ali. Por isso, acredito que no futuro, Lucas poderá experimentar esse mesmo nível de conexão com seus irmãos Kung Fu, por meio de uma experiência marcial verdadeiramente imersiva. É nisso que quero acreditar.


The "Si Hing-Dai" (師兄-弟) Relationship in the Kung Fu Dimension.

 


You could have seen us there, on that Saturday morning: Diego (a disciple of Senior Master Monnerat) and me, with him watching us attentively. In the background, Senior Master Fabio Gomes—always very attentive to what his Si Fu, Grandmaster Leo Imamura, says—was validating some concepts with him. At the door, my disciple Lucas was observing my attempt at tutoring within the "Cham Kiu" Domain.

Well before that, we had met at the bakery, and Grandmaster Leo Imamura arrived bringing important questions about the work that was to be done with Diego that morning. I had already worked with him the previous Friday evening, but the Grandmaster stated that, for that morning, what had been done the night before was no longer sufficient. So, he brought some very direct questions about the work ahead, and everyone at the table watched as I responded.

Normally, I don’t get nervous in situations like that, but on that particular morning, I was. Not because of the people watching, but because, for some mysterious reason, a few months earlier, within the same “Cham Kiu” work, my performance had become embarrassing. At a certain moment during that occasion, Grandmaster Leo Imamura even asked Master Monnerat to assist me—it felt as if some mental "switch" had been turned off.

So, sitting there, my anxiety to show that the situation was no longer the same was so intense that I couldn’t find the words to say what I meant. In moments like that, I also recall something Professor Vanise Almeida once told me, advising me to "lower my guard and stop fighting so much":
— “You’ve been fighting for a long time, try to be a little less Yang, Thiago,” she might have said.

It feels like a competition with myself. But Grandmaster Leo Imamura gently guided me towards what was appropriate and pointed out how important it was that I be able to clearly articulate what I knew. In the meantime, he was also able, in a very rich way, to show me just how much my mind is geared towards "Mobilisation" rather than "Tutoring".

The first time I tried to help Diego, at the request of the Grandmaster, was at a hotel in Rio, in the early hours of the morning, a few years ago. On that occasion and in others since, perhaps Diego felt confused because of my conduct during the practice, not so assertive regarding what I was doing. This happens because, at the level of work proposed by Grandmaster Leo Imamura, a moment of inattention and you know you need to start all over again. Sometimes he comes up to you and watches closely, sometimes he calls your attention with the vehemence that the nature of the Domain you are in demands, but he also says “thank you” when you haven’t compromised the work.

Because of this, it’s not difficult to practise for many hours. You become so immersed in the pursuit of excellence that the greatest care I need to take is not to turn so far inward in search of what is appropriate and forget about the person in front of me.

Over time, the practices with Diego began to end with a smile from both of us, Diego gives thanks and we share a brief hug. We hardly speak throughout the entire practice, but there is nothing that needs to be said. Sometimes the mutual effort in search of intentionality is so intense that, when the Grandmaster makes a strategic pause and asks: “Would you like to make a contribution, Master Pereira?” – it’s almost certain I’ll say: “No, Si Gung.” On the other hand, when he directs the question to Diego’s Si Fu who follows everything, Master Monnerat makes brief and polite comments. Always positive and aimed at improvement. Then we continue.


Recently, I came across a remarkable video by Aikido 7th Dan, Sihan Ricardo Leite, about the bond of brotherhood within the world of martial arts.
— “You see the guy every day, and eventually you even become friends at work. But making friends is not what defines Aikido practice. It’s about creating harmony, a brotherhood that is based, founded on martial experience. We become brothers when, together, we discover the reason behind a movement, without force. I, the one applying it, find the way to explore my partner’s force as he attacks me, and I do this in such a way that the result comes independently of me or of him. Because we convey the art in practice beyond our conscious capacity. It expresses itself in the fullness of our individual human capacity, together.

That statement struck me as brilliant, because he managed to put into words a feeling I experienced precisely with Diego on Friday night and, even more so, on Saturday morning. We are not from the same Kung Fu Family, and Diego kindly calls me “Si Hing”, but I want to believe that what I experienced with him was exactly what Sihan Ricardo Leite describes in his video, regardless of whether or not we belong to the same Kung Fu Family.



But perhaps you remember Lucas standing at the door of the Institute, in the first image of this article. As I always write here, amid mistakes and more mistakes, and the challenges of the Kung Fu Life and its practice, I allow Lucas always manages to access everything he seeks on this journey.

That very same day, after the event with Master Bruno at the Hotel Nikkey, we returned to the Moy Yat Institute and spent an hour and a half there practising. Lucas had eaten a bit too much and had tasted some Chinese heavy alcohol offered by Master Bruno. He was wearing formal clothing during the practice, and even with the air conditioning, he was sweating quite a lot.

At one point, Lucas paused, staring into the distance, sitting alone in the common room. I looked at him through the doorway and asked if he was alright. He asked for a moment, as the food was "coming back". A short while later, he got up and continued — now practising the Biu Gwan. He looked much better than the last time I saw him. With each attempt, he seemed more precise than the previous one, and I no longer saw in him the expression of someone feeling unwell. On the contrary — he seemed completely immersed.

With a deeper understanding of handling the Gwan, acquired during the Level 5 Seminar, and the appropriate mental attitude, that was one of our best days. Perhaps I no longer even needed to be there. That’s why I believe that in the future, Lucas will be able to experience this same level of connection with his Kung Fu brothers, through a truly immersive martial experience. That is what I choose to believe.


domingo, 21 de setembro de 2025

The Dim Sum(點心) Aunties, GM Leo, and The New York Times.

(Grão-Mestre Leo Imamura)
(Grandmaster Leo Imamura) 

"...Um a um, os cestos iam sendo levados, enquanto a Sra. So e outros atendentes cruzavam o salão, parando em cada mesa para apresentar suas ofertas. Os clientes apontavam para os cestos, atraídos pelo perfume de soja e camarão cozido no vapor em rolinhos de arroz, pelo aroma terroso das folhas de lótus envolvendo arroz glutinoso com linguiça, e pela visão dos pãezinhos de porco fofinhos ou das brilhantes tortinhas de ovo amarelas..."
(Por David Pierson e Berry Wang, para o NY Times)

O artigo do New York Times, escrito por David Pierson e Berry Wang, fala sobre o fechamento do restaurante Metropol, um dos maiores restaurantes de dim sum de Hong Kong, e sobre como isso marca o fim de uma tradição muito característica: as tias do carrinho de dim sum (em cantonês: 點心姐 dim2 sam1 ze2 ou ainda 推車阿姐 teoi1 ce1 aa3 ze2).

Dim Sum (點心) é um estilo tradicional de culinária cantonesa composto por pequenas porções de comida, servidas em cestos de bambu ou pratinhos.
A primeira vez que comi Dim Sum (點心) com o Grão-Mestre Leo Imamura foi em um estabelecimento no bairro da Liberdade. Meus discípulos Lucas e Daniel estavam presentes, e também, se não me engano, o Mestre Senior Felipe Soares e seu To Dai, Charles Morrison. Coube a mim fazer o pedido.

Muitas famílias chinesas ocupavam o espaço naquela manhã de domingo, e os atendentes não tinham muito tempo a perder com um iniciante como eu. Por isso, após alguns minutos, chegaram à mesa duas tigelas de congee. O pedido havia sido feito de maneira equivocada.
Si Gung me mostrou como fazer os pedidos corretamente, como o do Siu Maai (燒賣). Mas, como vocês já leram em outros artigos, sendo essa a primeira vez, eu ainda erraria muito até acertar.

“…One by one, the baskets were carried across the room, as Mrs So and other attendants moved through the dining hall, stopping at each table to present their offerings. Customers pointed to the baskets, enticed by the fragrance of soy and steamed shrimp wrapped in rice rolls, by the earthy aroma of lotus leaves enclosing glutinous rice with sausage, and by the sight of fluffy pork buns or the gleaming yellow egg tarts...”
(By David Pierson and Berry Wang, The New York Times)

The New York Times article, written by David Pierson and Berry Wang, discusses the closure of the Metropol restaurant, one of the largest dim sum establishments in Hong Kong, and how this marks the end of a distinctive tradition: the “dim sum cart aunties” (in Cantonese: 點心姐 dim2 sam1 ze2 or 推車阿姐 teoi1 ce1 aa3 ze2).

Dim Sum (點心) is a traditional style of Cantonese cuisine consisting of small portions of food, typically served in bamboo baskets or small plates.
The first time I ate Dim Sum (點心) with Grandmaster Leo Imamura was at an establishment in the Liberdade district in Sao Paulo, Brazil. My disciples Lucas and Daniel were present, as well as, if I recall correctly, Senior Master Felipe Soares and his To Dai, Charles Morrison. It fell to me to place the order.

Many Chinese families filled the restaurant on that Sunday morning, and the attendants did not have much time to waste on a beginner like me. As a result, after a few minutes, two bowls of congee were brought to the table. The order had been placed incorrectly.
Si Gung showed me how to order properly, such as with the Siu Maai (燒賣). Yet, as you may have read in other articles, being my first experience, I would make many mistakes before eventually getting it right.


(A Srta. Nan serviu-se do congee de uma maneira inédita para mim naquela ocasião 
 fato que não passou despercebido pelo Grão-Mestre Dani Hu.)

(Miss Nan served herself the congee in a way that was entirely 
new to me on that occasion — a fact that did not go unnoticed by Grand Master Dani Hu.)


Os autores do artigo do New York Times comentam que muitas dessas trabalhadoras(as “tias do carrinho de dim sum”) são idosas e dependem do emprego. Para elas, o fechamento representa incerteza, já que restam poucas oportunidades. Algumas, como a ex-funcionária Li Bo-sau, ainda guardam lembranças vívidas e emocionais do trabalho, que marcou suas vidas.

Foi em mais um restaurante de Dim Sum (點心), em mais um domingo — só que desta vez à noite — que eu, Srta. Nan Satornlug, o Grão-Mestre Leo Imamura e o Sihan Ricardo Leite, setimo dan em Aikido, fomos recebidos gentilmente pelo Grão-Mestre Dani Hu, que nos conduziu até uma mesa ao fundo. E lá estava uma tigela de congee.

Se na primeira oportunidade eu havia feito o pedido no momento errado, agora eu não sabia como servir.

Sabe... quando minha jornada no kung fu ainda estava restrita apenas aos acontecimentos da Família Moy Jo Lei Ou, era comum que Irmãos Kung Fu mais novos, me perguntassem o que fazer ou como se portar à mesa ou em outras situações.
Não é que o que eu sabia tenha deixado de servir — mas, com a variação de contextos aos quais o GM Leo Imamura vem me expondo, a quantidade de momentos inéditos à mesa tem sido alta.

Ali estavam dois Grãos-Mestres, um Sihan setimo dan de Aikido e a Srta. Nan, que não fala português. Achei que seria inteligente não fazer nada e apenas aguardar.
A conversa começou animada e assim seguiu. Depois de alguns minutos, o congee seguia parado no centro da mesa, e já não parecia mais tão inteligente a decisão que eu havia tomado.

The authors of the New York Times article note that many of these workers (the “dim sum cart aunties”) are elderly and rely on their jobs. For them, the closure represents uncertainty, as few opportunities remain. Some, like former employee Li Bo-sau, still hold vivid and emotional memories of the work, which shaped their lives.

It was at yet another Dim Sum (點心) restaurant, on yet another Sunday — though this time in the evening — that I, Miss Nan Satornlug, Grandmaster Leo Imamura, and Sihan Ricardo Leite(7th Dan in Aikido) were kindly welcomed by Grandmaster Dani Hu, who guided us to a table at the back. And there it was again: a bowl of congee.

If on the first occasion I had placed the order at the wrong moment, this time I did not know how to serve it.

You see… when my journey in kung fu was still confined solely to the events within the Moy Jo Lei Ou Family, it was common for younger Kung Fu Brothers to ask me what to do or how to behave at the table or in other situations.
It is not that what I knew has ceased to be useful — but, with the variety of contexts to which GM Leo Imamura has been exposing me, the number of unfamiliar moments at the table has increased considerably.

There I was, with two Grandmasters, a Sihan… and Miss Nan, who does not speak Portuguese. I thought it would be wise to do nothing and simply wait.
The conversation soon became lively and carried on that way. After a few minutes, however, the congee remained untouched in the centre of the table — and my decision no longer seemed quite so wise.

(Foto do meu primeiro Dim Sum com o GM Leo)
(My first Dim Sum with Grandmaster Leo)

"Os heróis dos 'rios e lagos' (JiangHu) não se limitam apenas a sentar-se para uma refeição rápida; eles devoram pilhas de carne regadas com baldes de álcool de arroz. E tais banquetes não são meramente celebrações de apetites masculinos prodigiosos — eles são o prelúdio para o encontro com companheiros heróicos ou para façanhas que desafiam a morte."
(Boretz, Gods, Ghosts, and Gangsters: Ritual Violence, Martial Arts, and Masculinity on the Margins of Chinese Society, University of Hawai‘i Press, 2011, p. 32).

Muito mais do que o simples fechamento de um estabelecimento ou a difícil situação em que essas senhoras se encontrarão após o dia 25 de setembro deste ano, quando as atividades com o Dim Sum (點心) se encerrarem, estamos diante de uma perda cultural considerável para a cidade. Trata-se de algo que vai além de uma mudança logística: representa a perda de um modo de convivência social em um espaço específico da vida urbana. Além disso, observa-se um declínio cada vez mais acentuado da presença das “tias do carrinho de dim sum”, progressivamente substituídas por robôs ou procedimentos digitalizados que, se por um lado agilizam o serviço, por outro comprometem — muito além da simples nostalgia — um patrimônio cultural imaterial que não conseguimos apreciar em sua totalidade.

O Grão-Mestre Leo Immaura vem alertando sobre as mudanças que ocorrerão no cenário profissional do Sistema Ving Tsun nos próximos anos. A cada vez que retorna ao assunto, ele brinca dizendo que, se antes a previsão era de longo prazo, agora é bem mais curta. Com isso, muitos profissionais, Famílias Kung Fu e instituições poderão deixar de existir se não compreenderem como se resguardar diante dos desafios desta nova era, sem que para isso precisem descaracterizar por completo o Sistema Ving Tsun — seja por necessidade financeira, seja por falta de qualificação adequada.

The heroes of the ‘rivers and lakes’ (JiangHu) do not merely sit down for a quick meal; they devour piles of meat washed down with buckets of rice wine. And such banquets are not merely celebrations of prodigious masculine appetites — they are the prelude to encounters with heroic companions or feats that defy death.” (Boretz, Gods, Ghosts, and Gangsters: Ritual Violence, Martial Arts, and Masculinity on the Margins of Chinese Society, University of Hawai‘i Press, 2011, p. 32).

Far more than the mere closure of an establishment or the difficult situation these ladies will face after 25 September this year, when dim sum (點心) activities come to an end, we are witnessing a considerable cultural loss for the city. It is something that goes beyond a simple logistical change: it represents the loss of a mode of social interaction within a specific urban space. Furthermore, there is an increasingly noticeable decline in the presence of the “dim sum cart aunties”, who are progressively being replaced by robots or digitised procedures which, while speeding up service, compromise — far beyond mere nostalgia — an intangible cultural heritage that we are unable to fully appreciate.

Grandmaster Leo Imamura has been warning about the changes that will occur in the professional landscape of the Ving Tsun System in the coming years. Each time he returns to the subject, he jokingly says that, whereas the previous forecast was long-term, it is now considerably shorter. Consequently, many professionals, Kung Fu Families, and institutions may cease to exist if they do not understand how to safeguard themselves against the challenges of this new era, without having to completely compromise the Ving Tsun System — whether due to financial necessity or a lack of adequate qualifications.


A foto acima é de um domingo no Instituto Moy Yat, com o Grão-Mestre Leo Imamura, que contou com a assistência do Mestre Sênior Felipe Soares, quando revisei todo o Nível 6 do Programa Ving Tsun Experience, a meu pedido. Em alguns momentos, eu me via travado e parecia que não conseguiria avançar dali. O Grão-Mestre Leo Imamura me auxiliava sempre de maneira pontual; outras vezes apenas me deixava praticando, e em determinados momentos dizia algo como: “Se você não conseguir fazer isso, não poderemos almoçar.”

Herrigel, autor do livro A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, explica que esse esforço contínuo não visa resultados imediatos, mas sim a formação interior do praticante, que aprende a abandonar a pressa e o apego ao sucesso visível, confiando no processo como caminho para a verdadeira maestria (Herrigel, A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, Vozes, 2011, p. 37).

Para que, enquanto profissionais do Sistema Ving Tsun, possamos resguardá-lo para as próximas gerações, todo o nosso tempo e dedicação ainda serão insuficientes. Por isso a importância de uma rede de apoio qualificada e de organizações comprometidas — caso contrário, não seria possível. Ainda assim, precisamos nos dedicar de maneira orientada e em nível artístico, para que possamos compor essa rede e garantir, de alguma forma, que um Si Fu sempre será relevante, desde que tenha clara sua função na sociedade.

The photograph above was taken on a Sunday at the Moy Yat Institute, with Grandmaster Leo Imamura, who was assisted by Senior Master Felipe Soares, when I reviewed the entire Level 6 of the Ving Tsun Experience programme at my request. At times, I found myself stuck and it seemed that I would not be able to progress. Grandmaster Leo Imamura would provide timely assistance; at other times, he simply let me continue practising, and on certain occasions he would remark: “If you cannot do this, we will not be having lunch.”

Herrigel, author of The Zen Archer: The Art of Archery as a Spiritual Discipline, explains that this continuous effort is not aimed at immediate results, but rather at the inner development of the practitioner, who learns to abandon haste and attachment to visible success, trusting the process as the path to true mastery (Herrigel, The Zen Archer: The Art of Archery as a Spiritual Discipline, Vozes, 2011, p. 37).

In order that we, as professionals of the Ving Tsun System, may safeguard it for future generations, all our time and dedication will still be insufficient. This emphasises the importance of a qualified support network and committed organisations — without which it would not be possible. Nevertheless, we must dedicate ourselves in a guided and artistic manner, so that we may compose this network and ensure, in some way, that a "Ving Tsun Si Fu" remains relevant, provided that they have a clear understanding of their role in society.



Para ler a tocante materia no New York Times CLIQUE AQUI

o read the emotional article in The New York Times, CLICK HERE.

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Reflections on Mui Fa Jong (梅花樁)

(Muk Yan Jong, 2011)

Ao longo de minha trajetória profissional, existem muitos episódios em que gostaria de ter uma segunda oportunidade. Em um deles, eu estava responsável por fazer o Hoi Jong(Abertura da listagem do Da Jong do Domínio Mui Fa Jong) de uma irmã de Kung Fu. Fiz o melhor que pude naquele dia, mas lembro claramente dela parada, olhando para o boneco, sem saber o que fazer a seguir. Em determinado momento, ela colocou as mãos na cintura e me olhou. Ela sorria — mas não era um sorriso de felicidade. Tampouco sei dizer exatamente qual sentimento estava expresso ali.

Eu participava, ainda que sozinho na maioria das vezes, dos seminários que o Grão-Mestre Leo Imamura promovia em outros Núcleos (como eram chamados na época da Moy Yat Ving Tsun Martial Intelligence)do Rio de Janeiro, e tentava, ali, seguir o que havia entendido ser o papel de um tutor.

Porém, com os anos — ao me deparar com minhas próprias limitações — lembrei-me desse episódio e me perguntei: o que ela poderia fazer, se não houve uma construção prévia para que estivesse diante do boneco? O mais interessante é que o acesso dela àquele Domínio havia sido uma indicação minha.

Hoje entendo que uma atitude mental condizente com este Domínio, ao praticarmos com o boneco, é a de sempre manter a estabilidade durante todo e qualquer movimento. Devemos, principalmente, evitar “remediar” um movimento anterior mal executado por meio do movimento seguinte. Segundo o que o Grão-Mestre Leo Imamura teria dito em uma oportunidade: o artista marcial se previne; já o lutador não se incomoda em cair em uma situação ruim, pois acredita que poderá criar outra situação para remediá-la.

Ao acessarmos Domínios sem termos a devida condição para tal, entramos em um ciclo sem fim de remediação — tanto por parte do praticante quanto daquele que está responsável pela apresentação do conteúdo naquele momento.

Para um praticante que não foi preparado para estar ali, o tutor se vê obrigado a tecer comentários apenas para gerar algum efeito. Mas, como também teria dito o Grão-Mestre: esse efeito é de pouco efeito. O efeito deve ser recolhido, e não buscado.
Portanto, ao demonstrar toda a sua garra a partir de uma orientação para “conseguir”, o praticante estará, cada vez mais, se afastando da Dimensão Kung Fu..

Throughout my professional journey, there have been numerous episodes in which I would have welcomed a second opportunity. In one such instance, I was responsible for conducting the Hoi Jong (Opening of the Da Jong listing for the Mui Fa Jong Domain) for a Kung Fu sister. I did the best I could that day, but I clearly remember her standing still, looking at the wooden dummy, unsure of what to do next. At one point, she placed her hands on her hips and looked at me. She was smiling — but it was not a smile of happiness. Nor can I precisely define the emotion that was being expressed in that moment.

I used to attend, often alone, the seminars led by Grandmaster Leo Imamura at other branches (as they were called at the time of Moy Yat Ving Tsun Martial Intelligence) in Rio de Janeiro, and I tried, within my understanding, to fulfil the role of a tutor.

However, over the years — when confronted with my own limitations — I recalled this particular episode and asked myself: what could she possibly have done, given that no prior groundwork had been laid to prepare her for facing the dummy? What is most interesting is that it was I who had recommended her access to that Domain.

Today, I understand that the appropriate mental attitude when practising with the wooden dummy — and one that aligns with this Domain — is to maintain stability throughout every movement. Above all, we must avoid attempting to “remedy” a poorly executed previous movement by way of the subsequent one. According to something Grandmaster Leo Imamura is known to have said on one occasion: the martial artist acts in a preventive manner; whereas the fighter does not mind finding himself in a disadvantageous situation, as he believes he will be able to create another situation to remedy it.

When we access Domains without being properly prepared to do so, we enter an endless cycle of remediation — both on the part of the practitioner and of the individual responsible for presenting the content at that time.

For a practitioner who has not been adequately prepared, the tutor is left having to offer commentary merely to produce some effect. But, as the Grandmaster is also known to have said: this kind of effect is of little effect. The effect must be received, not sought.

Therefore, when a practitioner, full of determination, acts based on an instruction simply to “succeed”, they are, paradoxically, distancing themselves further and further from the Kung Fu Dimension.


(Da Jong, 2003)

Em um dos capítulos de seu livro "Viva Melhor com a Sabedoria de um Mestre de Kung Fu", o Grão-Mestre William Moy comenta sobre como organiza um momento de prática em sua Família Kung Fu, separando os praticantes em duplas. Ele explica:

"...Dentro desse pareamento, um dos participantes indubitavelmente terá mais experiência que o outro. Como um irmão ou irmã mais velho em casa pode esclarecer como realizar uma tarefa doméstica simples para um irmão mais novo, o praticante mais experiente guiará seu parceiro, corrigindo potenciais erros e oferecendo feedback. Na Cultura Kung Fu, seus mais velhos têm títulos específicos. Seu irmão Kung Fu mais velho pode ser chamado de si hing, e sua irmã Kung Fu mais velha de si je..."

Mas ele inicia o capítulo com uma pergunta muito interessante:

"Por que uma Família Kung Fu?"

Comecei a praticar o Domínio Mui Fa Jong em 2002 e, até o final de 2004, minha abordagem ainda era bastante "rasteira". Tive vários companheiros de prática naquele período, mas, não importava quem fosse, o plano geralmente consistia em partir pra dentro. Com o passar dos anos, tornou-se quase impossível imaginar uma abordagem mais inteligente, e assim também era na vida. O Grão-Mestre Leo Imamura talvez resumisse a habilidade desenvolvida nesse tipo de prática como o ato de fazer tudo o que o outro quer — e ainda assim ter vantagem.

Quando meus primeiros discípulos chegaram a esse Domínio, eu os colocava para praticar entre si, enquanto monitorava. Infelizmente, haviam herdado essa mesma característica de simplesmente partir pra dentro, sem saber recorrer aos recursos que possuíam(ainda que poucos). Com isso, outros praticantes foram chegando, mas sua motivação para continuar diminuía. O Sistema Ving Tsun enxerga as artes marciais dentro do contexto da vida — e de fazer o que é apropriado para o momento, não simplesmente o que se quer.

Você não tem liberdade para fazer o que quer; é preciso ter coerência estratégica. Mas eu não consegui transmitir isso a eles naquele primeiro momento. E, tanto na Vida Kung Fu quanto na prática, tudo acabou se resumindo a forçar o resultado. 

In one of the chapters of his book "Live Life Like a Kung Fu Master", Grandmaster William Moy discusses how he organises a moment of practice within his Kung Fu Family, pairing practitioners in twos. He explains:

“...Within this pairing, one of the participants will undoubtedly have more experience than the other. Just as an older sibling at home can clarify how to perform a simple household task for a younger one, the more experienced practitioner will guide their partner, correcting potential errors and offering feedback. In Kung Fu Culture, your elders have specific titles. Your older Kung Fu brother may be called si hing, and your older Kung Fu sister si je...”

Yet he begins the chapter with a particularly thought-provoking question:

“Why a Kung Fu Family?”

I began practising the Mui Fa Jong Domain in 2002, and by the end of 2004, my approach was still quite “basic”. I had several training partners during that period, but regardless of who they were, the general approach was to simply charge in. Over time, it became nearly impossible to imagine a more intelligent approach — and the same applied to life itself.

Grandmaster Leo Imamura might have summed up the skill developed through such a method as doing everything the other person wants — and still having the advantage.

When my first disciples reached this Domain, I would have them practise among themselves while I observed. Unfortunately, they had inherited the same tendency to charge in, without knowing how to access the resources they had — however limited. As more practitioners joined, their motivation to continue began to diminish.

The Ving Tsun System sees martial arts within the broader context of life — and of doing what is appropriate for the moment, not simply what one wants to do.

You do not have the freedom to act on mere impulse; what is required is strategic coherence. But I was not able to convey this to them at that time. And so, both in Kung Fu Life and in practice, everything came down to forcing the outcome.

Já estamos há três anos dentro do Programa de Salvaguarda, com todo o suporte do Grão-Mestre Leo Imamura e da rede de apoio. Um dos instrumentos desse Programa é o M.O.A., que chamamos de "Momento Oportuno para o Acesso ao Sistema Ving Tsun".

Apesar de se manifestar em termos práticos, esse instrumento está inserido no vetor estratégico de Provimento Personalizado de Vida Kung Fu. Depois de oito meses neste ano de prática, percebi com clareza que meus discípulos e alunos saíam confusos sobre como abordar esse instrumento, no qual é promovida uma troca entre irmãos Kung Fu mais velhos e mais novos.

Já havia escutado o Grão-Mestre Leo Imamura comentar que esse tipo de prática não se trata de simplesmente deixar os alunos mais novos com os mais velhos.

Diante dessa dúvida, resolvi pedir ajuda a outros Mestres, e o Mestre Sênior Quintela pôde compartilhar todo o seu entendimento do Programa e de seus instrumentos — em especial, deste. Ele disse:

“...Você precisa usar do ambiente, da equipe de tutores, para checar o quanto a pessoa está se permitindo. Por isso, na minha visão, não tem uma regra absoluta: pode, às vezes, ter um tutor mais experiente, pode, às vezes, não... Você pode estar presente, na maioria, não... Tudo vai depender do ambiente que você quer personalizar para aquele tutorado. Essencialmente, é deixar criada uma ambiência aberta, mas muito monitorada, para que a pessoa possa se expressar....

Essa foi uma troca muito valiosa, na qual ele me conduziu a uma melhor compreensão do uso desse instrumento dentro do contexto do Provimento de Vida Kung Fu.
Com isso, compreendi que o pré-evento (para a criação da ambiência) e o pós-evento (para avaliar e validar com o praticante como foi a experiência para ele) são fundamentais.

Só assim é possível entender, em profundidade, o que o Grão-Mestre Leo Imamura quis dizer quando afirmou que não devemos simplesmente "largar" as pessoas praticando entre si.

We have now been involved in the Safeguarding Programme for three years, with the full support of Grandmaster Leo Imamura and the surrounding support network. One of the tools within this Programme is the M.O.A., which we refer to as the “Opportune Moment for Access to the Ving Tsun System.”

Although this instrument manifests in practical terms, it is embedded within the strategic vector of Personalised Provision of Kung Fu Life.

After eight months of practice this year, I came to clearly see that my disciples and students were often left confused about how to approach this instrument, which promotes an exchange between elder and junior Kung Fu siblings.

I had already heard Grandmaster Leo Imamura remark that this type of practice is not about simply leaving the rookie students in the hands of the senior ones.

Faced with this uncertainty, I sought guidance from other Masters, and Senior Master Quintela generously shared his understanding of the Programme and its instruments — particularly this one. He stated:

“You need to make use of the environment and the team of tutors to gauge how much the individual is allowing themselves to open up. For that reason, in my view, there is no absolute rule: sometimes there may be a more experienced tutor, sometimes not… You may be present — though in most cases, you are not… Everything will depend on the kind of environment you wish to personalise for that individual. Essentially, it’s about creating an open yet closely monitored ambience in which the person can express themselves.”

This was a truly valuable exchange, through which he guided me toward a deeper understanding of how to make use of this instrument within the context of Kung Fu Life Provision.

I came to realise that both the pre-event (focused on creating the appropriate ambience) and the post-event (for assessing and validating the practitioner’s experience) are essential.

Only through such an approach is it possible to truly grasp the depth of what Grandmaster Leo Imamura meant when he said that we must not simply “leave” people practising among themselves.

(Maai Sang Jong , 2004)



Um boneco de madeira pode ser considerado um dispositivo: ele tem uma configuração que pode ser manipulada por nós para gerar determinado efeito.

Voltando aos episódios tristes da minha carreira — com minha querida irmã Kung Fu, com quem não fiz um bom trabalho, ou com meus discípulos, que sofreram com minhas limitações — você pode estar de frente para o boneco, e talvez até um tutor inexperiente diga:

Ei! A configuração do boneco porta potencial nela mesma!

Você pode até acreditar, mas ou não saberia explorar esse potencial, ou sequer conseguiria enxergá-lo.

Por essas e outras, não me canso de me encantar com a inteligência contida nos instrumentos do Programa. Eles sempre parecem antever as dificuldades daqueles que deveriam ser personificações do Sistema Ving Tsun .

Com isso, sei que esses fragmentos de memória, marcados por pontos baixos na minha carreira, não poderão ser apagados. Mas tenho uma esperança muito forte no meu coração de que, a cada dia, será possível fazer um trabalho cada vez melhornunca sozinho e nunca baseado apenas na minha cabeça.

Por isso, sou sempre grato pelas novas oportunidades que meus discípulos me dão: oportunidades de fazer um trabalho mais digno do que fiz da primeira vez.

Eu nunca desisti.


A wooden dummy can be regarded as a device: it has a configuration that may be manipulated by us in order to generate a specific effect.

Reflecting on the more difficult episodes of my career — with my dear Kung Fu sister, with whom I failed to do a proper job, or with my disciples, who suffered due to my limitations — one might stand before the dummy, and perhaps even hear an inexperienced tutor say:

“Hey! The configuration of the dummy holds potential in and of itself!”

You might even believe that to be true, yet either be unable to explore that potential, or fail to perceive it altogether.

It is for reasons such as these that I never cease to be amazed by the intelligence embedded in the instruments of the Safeguard Programme. They always seem to anticipate the challenges faced by those who are meant to embody the Ving Tsun System.

With that in mind, I know that these fragments of memory — marked by low points in my career — cannot be erased. Yet I hold a strong hope in my heart that, with each passing day, it is possible to do a better and more refined job — never alone, and never relying solely on my own judgement.

For this reason, I remain deeply grateful for the new opportunities my disciples continue to offer me: opportunities to do a more honourable job than I did the first time.

I never gave up.