quarta-feira, 24 de setembro de 2008

ESTRUTURA DE LINHAGENS E FAMILIAS CHINESA

O BLOG DO PEREIRA, trás mais uma transcrição de livro, que desta vez, tem muito em comum com a arte chinesa Ving Tsun, praticada pela maioria que acessa este site.
Num texto que fala da estrutura familiar e de linhagem na China, além do funcionamento dos vilarejos, é possivel traçar paralelos com a historia do nosso proprio Sistema.

Este interessantíssimo texto, é um Capítulo do livro "CHINA -UMA NOVA HISTÓRIA" de autoria de John Fairbank e Merle Goldman, que transcrevo aqui a titulo de estudo.

O livro foi publicado pela L&PM Editores em 2006. e-mail para pedidos: vendas@lpm.com.br fale conosco: info@lpm.com.br www.lpm.com.br

O VILAREJO: FAMÍLIA E LINHAGEM
(por John King Fairbank e Merle Goldman)


A fim de entender a China nos dias atuais, faz-se necessária uma abordagem antropológica que analise o ambiente familiar e urbano no qual a China moderna começa a emergir. Até os dias de hoje, o povo chinês é composto, em sua maioria, por camponeses que cuidam da terra;a maior parte deles vive em vilarejos, em casas erguidas com tijolos artesanais,bambu,vime ou por vezes pedra. O piso é de terra ou pedra e as janelas costumam ser de papel e não de vidro. Com frequência, metade de sua renda é gasta com alimentação, logo, os chineses ainda carecem do luxo do espaço físico.As casas dispõem em geral de quartos com quatro divisões,cada uma delas para três pessoas.Algumas vezes,os membros da Família de ambos os sexos e de duas a três gerações dividem a mesma cama de alvenaria, que , no Norte da China, pode ser aquecida pelo encanamento do fogão próximo a ela. A força física prevalece sobre a máquina em quase todas as tarefas.
Para os americanos e europeus, acostumados a um alto padrão de vida, a característica mais intrigante nos camponeses chineses é a capacidade de manter uma vida altamente civilizada em condições tão pobres. A resposta para tal questionamento se encontra nas instituições sociais chinesas, que têm conduzido os indivíduos de cada família pelas diversas fases e vicissitudes da vida humana, de acordo com padrões de comportamento profundamente enraizados. Essas instituições e normas comportamentais estão entre os mais antigos e duradouros fenômenos sociais do mundo. A China preserva o sistema familiar como uma fortaleza, semelhante a um sistema que lhe fornece força e inercia.
Até bem pouco tempo, a família era um microcosmo,como um Estado em miniatura. Ela, não o inidivíduo, representava a unidade social e o elemento responsável pela vida política e também sua localidade. A devoção e a obediência dos filhos, incutidas no seio familiar, propiciaram a formação da lealdade para com o governante e a obediência à autoridade constituída no Estado.
A função da família de criar seus filhos para se tornarem leais servidores pode ser compreendida pelo padrão de autoridade dentro do tradicional grupo familiar. O pai era um autocrata supremo e tinha o controle sobre a utilização de todo o patrimônio familiar, inclusive a renda, bem como a decisão sobre os casamentos arranjados de seus filhos. A mistura de amor,medo e admiração das crianças pelos seus pais era reforçada pelo respeito aos mais velhos. A perda do vigor físico de um idoso era mais do que contrabalançada com sua sabedoria. Contanto que permanecesse em perfeitas condições mentais, o patriarca tinha o aval para exercer o domínio da vida familiar.De acordo com a lei, o pai podia vender seus filhos como escravos ou até mesmo executá-los por conduta imprópria, porém os pais chineses eram por costume e por natureza extremamente amáveis em relaçãoas crianças e se submetiam a um código de responsabilidade recíproca em relação a elas pelo fato delas serem membros integrantes da família.Contudo, a legislação e o costume forneciam pouca fiscalização para a tirania paterna caso algum pai decidisse exercê-la.
A dominação do mais idoso sobre o mais jovem na cultura familiar antiga acompanhava era como a do homem sobre a mulher.Até hoje, bebês do sexo feminino são mais propensas a sofrer infanticídio do que meninos.O casamento de uma menina era arranjado e jamais era uma união por amor. A trêmula noiva deixava sua família para trás e se tornava de imediato uma nora sob o controle da mãe do marido. Ela poderia se deparar com esposas secundárias ou concubinas em sua casa, sobretudo se não desse a luz um herdeiro menino. Ela podia ser repudiada pelo marido por inúmeros motivos. Se ele morresse, ela dificilmente poderia se casar outra vez. Tudo isso refletia o fato da mulher não ter indendência econômica, pois seu trabalho era absorvido por tarefas domésticas, o que não lhe garantia renda alguma. As mulheres do campo eram quase todas analfabetas. Tinham pouco ou nenhum direito sobre propriedade.
A condição inferior da mulher era uma mera manifestação da natureza hierárquica de todo o código social da China e de sua cosmologia.A China pré-moderna concebia o mundo como o produto resultante de dois elementos complementares que interagiam, yin e yang. Yin era o atributo de todos os elementos femininos:obscuro, fraco e passivo.Yang era o atributo masculino:brilhante,forte e ativo. Embora o masculino e o feminino fossem necessários e complementares,um era, por natureza, passivo em relação ao outro.Com base nesses fundamentos ideológicos,uma sucessão interminável de homens moralistas chineses construiu um padrão comportamental de obediência e passividade para a mulher.Esses padrões faziam com que as meninas se subordinassem aos meninos desde a infância e mantinham a esposa sujeita ao marido, e a mãe, ao seu filho adulto. As mulheres com personalidades mais fortes, que nunca faltaram na China, costumavam controlar suas famílias indiretamente e não pelo exercício direto do poder.

O status dentro da família era codificado pelos famosos "três laços" enfatizados pelos filósofos confucionistas; o laço da lealdade por parte de quem estava subordinado ao governante(ministro ou principe), o da obediência filial em relação aos pais e o da castidade por parte só das esposas. Para um ocidental igualitário, o que mais surpreende nessa doutrina é o fato de dois dos três tipos de relacionamentos pertecerem a família e todos com relações de superior e subordinado. A relação entre mãe e filho, que no ocidente admite a dominação materna, não era enfatizada pela teoria, embora fosse importante.
Quando um pai se deparava com o início da individualidade e independência de seu filho ele poderia temer que a tolerância pessoal egoísta pudesse causar algum distúrbio no seio familiar.Fortes laços de intimidade entre mãe e filho ou o filho e a esposa ameaçavam as diretrizes verticais de lealdade e respeito que mantinham a família sob autoridade do marido.No resumo de Jonathan Ocko(in Kwang-Ching Liu,1990), as esposas eram "elementos desestabilizadores inevitáveis", pois asseguravam a descendência, porém ameaçavam o laço de obediência entre os pais e filhos.
Além do laço comum de lealdade à família, a China pré-moderna estava unida pela experiência comum de uma elite local educada no mais alto padrão, que tinha como compromisso desde a infância estudar e seguir os textos e ensinamentos clássicos.O cuidado materno e a disciplina paterna se uniam para concentrar o esforço escolar dos jovens no autocontrole e na supressão do sexo e de impulsos frívolos.Como ressalta Jon Saari(1990) em seu estudo sobre a infância da elite, no final do século XIX, o treinamento dos jovens se baseava, acima de tudo, na obediência.Tão logo um menino entrasse na adolescência, o afeto recebido pelos pais era substituído por um treinamento intensivo direcionado a formação de seu caráter.
Dentro da família, num sentido mais amplo, cada criança se via envolvida, desde o nascimento, em um sistema altamente ordenado de relações de parentesco. Essas relações incluiam os irmãos e as irmãs mais velhos, as esposas dos irmãos mais velhos por parte de mãe, tias,tios, primos e avós,além de uma lista interminável - e de difícil compreensão para um ocidental- de outros tipos de parentesco que se incorporavam a família por intermédio do casamento. Esses relacionamentos não eram apenas melhores definidos e diferenciados do que os do ocidente, mas também demandavam uma série de direitos e deveres de acordo com o seu status. Os membros da família deveriam ser chamados pelo termo que indicasse de modo correto o nível de parentesco por quem estava lhe dirigindo a palavra.
No Sul da China, o antropólogo pioneiro Maurice Freedman(1971) descobriu que as linhagens familiares eram as principais instituições sociais -cada qual uma comunidade de famílias que reivindicava a descendência de um ancestral fundador, mantendo propriedades ancestrais e unindo-se em rituais periódicos em túmulos e mausoléus.Contando com o apoio de genealogias,os membros de uma linhagem podiam compartilhar interesses em comum tanto econômicos quanto políticos dentro da sociedade local. No Norte da China, entretanto,os antropólogos descobriram linhagens organizadas de forma distinta. A organização de parentesco chinês varia em cada região. As práticas familiares no que tange ao patrimônio, dotes de casamento, enterro, cremação ou afins, também têm uma história complexa, cujo mapeamento está apenas começando.
O sistema de parentesco chinês, tanto no Norte quanto no Sul, é patrilinear, com o comando familiar passando na linhagem masculina do pai para o filho mais velho. Assim, os homens perpetuam a família, enquanto as mulheres se casam e passam a pertencer a outras famílias, em nenhum dos casos seguindo o padrão de vida dos ocidentais. Até pouco tempo, um menino e uma menina chinesa não escolhiam seus cônjuges e, nem mesmo hoje em dia, costumam estabelecer, mesmo após o casamento, uma família independente. Ao contrário, em geral, passam a pertencer a família paterna do marido e assumem a responsabilidade de mantê-la, subordinando a vida matrimonial à vida familiar. Para muitos ocidentais, essa estrutura familiar pareceria insuportável.
O comando familiar é transmitido totalmente do pai para o filho mais velho, porém não o patrimônio. Nos primórdios de sua história, os chineses abandonaram o direito do primogênito à herança, por meio do qual o filho mais velho herdava todo o patrimônio do pai enquanto os filhos mais novos tinham de buscar outras fontes de renda, a dimensão dessa mudança institucional pode ser observada ao se comparar a China a países como a Inglaterra ou o Japão, onde os filhos mais novos que não compartilhavam o patrimônio do pai forneciam funcionários para o governo, os negócios e os impérios além-mar e onde uma nobreza local podia florescer para desafiar o poder central. Na China, a divisão igualitária da terra entre os filhos permitia ao mais velho manter apenas algumas prerrogativas cerimoniais, de forma a indicar a posição dele e algumas prerrogativas cerimoniais e, algumas vezes, uma parcela extra do patrimônio. O loteamento conseqüente da terra tendeu a enfraquecer sua manutenção contínua pela família, a fortalecer o poder dos funcionários do governo e a manter famílias camponesas a beira da subsistência. A principal tarefa de um casal era ter um filho homem para manter a linhagem familiar, pois o nascimento de mais filhos levaria ao empobrecimento da família.
Contradizendo o mito generalizado, uma família com muitos filhos não era uma norma entre os camponeses chineses. A carência de terra, como também a doença e a fome, limitava o número de pessoas que sobreviviam em cada unidade familiar. A grande família agregada, formada pelos filhos homens casados, cada qual com muitos rebentos e todos dentro de uma mesma unidade,que com frequência era considerada típica na China, parece ter sido uma exceção ideal, um luxo das famílias mais prósperas. A média de uma família camponesa limitava-se a quatro,cinco ou seis pessoas no total. A divisão da terra entre os filhos homens constantemente restringia a acumulação de propriedade e poupança e a família tinha pouca chance de ascender na escala social. Os camponeses ficavam presos à terra, não tanto pela lei ou pelo costume, mas em virtude de serem numerosos.
O vilarejo agrícola, até hoje o berço da sociedade chinesa, é formado ainda por unidades familiares que se perpetuam de geração em geração. Cada família reprsenta uma unidade sócio-econômica.Seus membros provêm o seu sustento, por meio do trabalho no campo, e adquirem seu status social pela familia a qual pertencem. O ciclo de vida do indivíduo está ainda intrisecamente interligado ao ciclo da agricultura intensiva ao qual aquela terra é submetida. A vida e a morte dos habitantes desses vilarejos seguem um ritmo que interpenetra no crescimento e na colheita dos produtos.
Contudo, a vida do camponês chinês, em geral, não se restringe a um vilarejo único e sim a um grupo de vilarejos que forma um centro comercial. Com uma visão aérea é possível observar esse padrão- a estrutura celular de comunidades comerciais, cada uma partindo de um centro comercial, formando anéis de vilarejos satélites ao redor do centro. O interior da China, antes da revolução, parecia uma colméia constituída por essas áreas, que eram relativamente auto-suficientes.Tomando por base o centro de comércio, trilhas(ou por vezes canais) se irradiavam para um primeiro anel de cerca de seis vilarejos,continuando até um segundo anel de,digamos,doze vilarejos.Cada um desses dezoito ou mais vilarejos contava com cerca de 75 famílias e cada família tinha uma média de 5 pessoas- os pais, às vezes dois filhos, o avô ou avó.Nenhum vilarejo ficava a uma distância maior do que cerca de quatro quilômetros do centro comercial, possibilitando que o trajeto de ida e volta fosse feito em apenas um dia em transporte de vara, carroça ou jumento(ou uma balsa pelo canal).Juntos, os agricultores e os lojistas do centro comercial, os artesãos, os proprietários de terra, os monges dos templos e outros formavam uma comunidade de aproximadamente 1,5 mil famílias ou 7,5 mil pessoas. O centro comercial funcionava periodicamente - a cada primeiro,quarto e sétimo dia de um ciclo de dez dias. Dessa forma, os mercadores intinerantes podiam visitá-lo com regularidade, quando visitavam o mercado central e as aldeias comerciais vizinhas, a oito quilômetros de distância, que funcionavam em ciclos semelhantes- a cada segundo, quinto e oitavo dia ou a cada terceiro,sexto e nono dia. Com essa periodicidade,uma pessoa de cada família podia ir ao centro comercial a cada terceiro dia do ciclo, talvez para vender algum item local ou comprar algum produto de fora,mas também para encontrar amigos em uma casa de chá, em um templo ou ao longo do caminho.Em um período de dez anos, um agricultor teria ido ao centro comercial um total de mil vezes.
Assim, embora os vilarejos fossem auto-suficientes, o grande centro comercial representava tanto uma unidade econômica quanto um universo social. Com frequência, os casamentos eram arranjados por intermédio dos casamenteiros no centro comercial e eram celebrados os festivais, sediados os encontros de sociedades secretas e a comunidade de camponeses tinha contato com os representantes da classe dominante- coletores de impostos e de aluguéis. Porém, pesquisas recentes alteraram esse estereótipo. Prasenjit Duara(1988) salientou o fato de os habitantes dos vilarejos participarem de redes diversas - de relações de parentesco, sociedades secretas,cultos religiosos,grupos de milícia ou do sistema de segurança de responsabilidade mútua - que não eram formadas necessariamente como uma extensão da rede comercial.


Publicado por Thiago,Moy Fat Lei